1988 - 2025
O Contraponto, esse ancião que teima em acompanhar a música ocidental desde sua fundação, milagrosamente sobrevivendo às grandes revoluções que testemunhou durante toda sua trajetória, algumas vezes com status de ciência e outras completamente marginalizado, está completando aproximadamente 700 anos. Aproximadamente, pois só foi reconhecido através do Discantus, no início do século 14, no intuito de descrever a combinação de linhas melódico-musicais (normalmente duas linhas) soando simultaneamente.
Em sua trajetória, denominou desde uma simples voz até uma composição inteira dividida de acordo com seus princípios (p. ex. Vincenzo Galilei, Contrapunti a due voci, 1584; ou os contrapuncti de J.S. Bach, A Arte da Fuga), e ocupou, por vezes, o lugar de sua própria progenitora a Polifonia.
Para muitos a lista de grandes personagens que estudaram e escreveram sobre contraponto culmina em Schenker que coligiu e formulou as razões básicas para a importância desse estudo. O declínio no interesse no estudo do contraponto como disciplina em algumas fases de sua história, tem a mesma causa que gerou o mesmo problema em disciplinas importantes como aritmética, geometria, filosofia, latim, entre outras, ou seja, por um lado, a ausência de professores qualificados capazes de tornar seu estudo significativo e interessante aos alunos, procurando evidenciar as conexões de suas qualidades enquanto técnica aos diversos estilos musicais, e por outro, a mistura confusa de estilos e métodos, ou seja, de uma abordagem vinculada a um estilo que, por sua vez, é traduzido em alguns exercícios “graduados” derivados das espécies de J.J.Fux.
Para muitos autores, entre eles Walter Piston, a arte do contraponto é a arte de combinar linhas melódicas.
Porém, sua essência, como um ingrediente de vitalidade interior, é alguma coisa mais profunda do que um processo de manipulação e combinação, pertinente aproximadamente a toda música.
Isso significa que toda a música possui algum grau contrapontístico.
Implícito na origem do termo contraponto está a idéia de discordância.
A atuação recíproca de concordância e discordância dos fatores que formam a textura musical, constitui o elemento contrapontístico em música.
O estudo dessas qualidades de concordância e discordância, ou, para dizê-lo de forma diferente, de dependência ou independência, é o cerne da questão envolvida no estudo (PISTON).
Na história da música podemos observar alguns marcos na arte do contraponto:
O primeiro dos períodos mencionados está sendo muito estudado atualmente, apesar de, aparentemente, ter cessado de exercer uma influência mais ativa na música, mas Palestrina e Bach se tornaram os maiores símbolos da polifonia. Uma consideração de momento das obras desses dois homens revela a existência de dois tipos de proximidade, duas atitudes contrapontísticas distintas, ou estilos contrapontísticos distintos. Ambos são de extrema importância no desenvolvimento da arte da música e o estudo de ambos é indispensável para todos os músicos e estudantes de música. (PISTON)
Em 1725, aos 65 anos de idade, J. J. Fux escreveu o Gradus ad Parnassum onde o ideal do estilo de Palestrina representava o ideal da música sagrada, e essa escolha é relembrada na inscrição Soli Deo Gloria, que os trabalhos do tempo de Fux carregam. A questão da excelência musical era para Fux a questão de uma expressão adequada do trabalho divino:
“Sendo Deus a mais alta perfeição, a harmonia composta para sua devoção deveria seguir as regras mais estritas que a perfeição pode clamar, até que as imperfeições humanas possam realizá-las”, escreve Fux. Mas uma particularidade notável do trabalho de Fux está no fato de que a integridade artística foi emparelhada com um discernimento histórico e pedagógico que lhe apontou a escolha da polifonia do século XVI como o último modelo de musical severidade e pureza. Assim, adotando a forma clássica do diálogo para as lições do Gradus, Fux se auto-declarou (Josephus) o estudante de Palestrina (Aloysius); e quando, no final do livro, mestre e discípulo analisam partes das missas de Fux, é como se Fux quisesse submeter seus próprios trabalhos ao julgamento do “príncipe da música sagrada”.
Alguns trechos das discussões entre Aloysius e Josephus, especialmente no inicio e no final, são sem dúvida reminiscências de cenas entre Fux e seus próprios alunos. Mas na essência do seu trabalho, Fux aparece como Josephus – o estudante – pois Fux verdadeiramente se deu conta que ensinar significa deixar aprender e que de forma a assumir o papel de intérprete do passado, o professor deve assumir o papel de discípulo (MANN).
Meu objetivo é ajudar os jovens que querem aprender. Conheci e ainda conheço muitos jovens que possuem excelentes aptidões e estão realmente ávidos para estudar; contudo, na falta de meios e um professor, não podem realizar sua ambição, mas continuam como antes, para sempre desesperadamente ansiosos. Procurando uma solução para esse problema, comecei portanto, vários anos atrás, a desenvolver um método similar ao pelo qual as crianças aprendem primeiro letras, depois sílabas, depois combinação de sílabas e finalmente, como ler e escrever. E isso não foi em vão. Quando utilizei esse método no ensino, observei que os alunos fizeram progresso assombroso em curto espaço de tempo. Então achei que prestaria um bom serviço à arte se o publicasse para o beneficio dos jovens estudantes, e repartisse com o mundo musical a experiência de quase trinta anos, durante os quais servi três imperadores (pelo que devo, com toda modéstia, me orgulhar). Além disso, como Cícero cita de Platão: "Nós não vivemos apenas para nós mesmos; nossas vidas pertencem também ao povo, aos nossos pais e a nossos amigos".
(J.J.FUX - 1725)
O método de estudo por espécies adotado por Fux é, até hoje, largamente utilizado. Schenker é um dos autores que demonstra o grande valor pedagógico desse método.
Algumas vantagens, principalmente para iniciantes, na abordagem por espécies foram destacadas por Alan Belkin (2000) e são aqui transcritas:
Cada uma das quatro primeiras espécies de Fux (em número de cinco) enfoca somente um ou dois elementos principais:
Assim, o estudo do contraponto “estrito” pode ser muito útil. Entretanto quando os estudantes avançam, muitas das restrições pedagógicas se tornam inúteis [e perigosas]. Por exemplo, o estudante que nunca trabalhou sem um cantus firmus não possuirá a habilidade de planejar uma sucessão harmônica completa “própria”. A monotonia do ritmo harmônico – sem mencionar da métrica (muitas nunca vão além do 4/4!) - gera problemas, deixando o estudante sem nenhum guia na escrita com maior mobilidade da voz do baixo, que é tão típica em texturas contrapontísticas, afetando os diversos momentos harmônicos e, conseqüentemente, a forma. A limitação em harmonias mais simples se torna um empecilho ridículo quando aplicada, por exemplo, no contraponto “inversível”, onde o uso de acordes com sétima aumenta em muito as possibilidades utilizáveis. E assim por diante. . .
O estudo da fuga de Fux é bem menos conhecido do que seu estudo de contraponto; mas é o estudo da fuga que ele mesmo descreve como o aspecto mais importante de seu trabalho.
Muitas vezes observa que o treinamento contrapontístico por espécies, que precede o estudo da fuga, não deveria ser considerado um fim em si mesmo.
Ele subordina os exercícios simples ao contraponto florido [quinta espécie] – uma combinação livre de diversos valores rítmicos que ainda seguem as regras estritas governando o uso das dissonâncias. Este, por outro lado, serve na preparação dos estudantes para o momento “quando as restrições do Cantus Firmus são removidas, e ele (o aluno), pode se sustentar nos próprios pés, ou melhor... pode escrever composições livres” – este é o tempo em que se adentra no estudo da fuga.
Ainda neste novo estágio de liberdade, o estudante não é deixado sem guia. Na forma imitativa, sua própria invenção serve como uma espécie de Cantus Firmus, e de compasso em compasso, cada nova idéia forma a base para a próxima. Este processo determina logicamente para Fux o momento do estudo da fuga no ensino da composição.
O método de progresso graduado de Fux – expresso no título do trabalho – é, portanto, um método que oferta um percorrer degrau por degrau as possibilidades para o estudante, confrontando-o gradualmente com tipos diferentes de problemas.
Essa idéia fez com que Schoenberg no seu Exercícios Preliminares de Contraponto incluisse, após a quinta espécie, uma outra espécie, denominoda por ele de primeira espécie composicional e que consiste, basicamente, na criação de duas vozes livres (Voz Livre X Voz Livre) sem a presença da voz do Cantus Firmus (CF) ou Canto Dado, mas orientadas pelos mesmos procedimentos da quinta espécie de Fux (Cantus Firmus X Voz Livre).
Outras abordagens no aprendizado do contraponto estão normalmente baseadas em estilos, e na maioria das vezes conectadas ao estilo ou de Palestrina ou de Bach. Enquanto que variam em eficácia, elas geram uma séria limitação: No ensino de um estilo específico os princípios gerais são facilmente obscurecidos. Para um compositor o estilo não pode ser um tipo de limitação, mas um constante envolvimento com a linguagem. Por estas razões, a abordagem parece mais apropriada ao treinamento do musicólogo do que do músico atuante como cantor, instrumentista, regente ou compositor.
Nessa perspectiva, qualquer que seja a abordagem pedagógica existem fatores essenciais que contribuem para o sucesso no estudo do contraponto:
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Orlando Marcos Martins Mancini
Professor de Contraponto
2017