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Hoje é dia: 25/04/2024



 

Exercícios Preliminares em Contraponto

 

A Consciência da Música

Prefácio de 1936 do compositor Arnold Schoenberg.

"Exercícios Preliminares em Contraponto", de Arnold Schoenberg.

Tradução de Eduardo Seincman. Ed. Via Lettera tel. (0xx11)3862-0760,


O contraponto é, na maioria das vezes, considerado uma espécie de ciência, um tipo de teoria ou estética; assim sendo, aquele que o estuda espera aprender leis indiscutíveis da arte musical. Esta visão teria sido praticamente correta no passado. Quando a arte contrapontística era o estilo musical por excelência, e professores, teóricos e estetas haviam realizado um trabalho meritório não apenas de elaborar com precisão as leis que nos conduziam com sucesso ao caminho certo, mas também de estabelecer o método pedagógico para treinar o iniciante de maneira confiável – naquela época teria sido impossível imaginar o que aconteceria depois, quando tais leis já não mostravam tudo o que diz respeito à arte musical. Mas se seguiu outro tempo, em que, em todos os aspectos, leis completamente diferentes começaram realmente a dominar a produção musical.

Já na obra de J.S. Bach, muitas das antigas leis e regras foram refutadas. Não é simplesmente por ter utilizado apenas excepcionalmente os modos da igreja, preferindo, em vez disso, escrever nos modos maior e menor modernos, mas também por ter desenvolvido e tornado muito mais livre o que seus antepassados consideravam dissonâncias. Ele se utilizou de acordes de sétima e de nona, ampliou a idéia de notas de passagem e alterou muitas outras restrições a partir de um novo conceito de sentimento melódico. Posteriormente, em Brahms, por exemplo, e especialmente em Wagner, essa mudança foi tão radical e a face musical transformou-se de tal maneira que, por algum tempo, parecia totalmente anacrônico estudar qualquer forma de contraponto. Entretanto, devido a isso, nem todas as conseqüências foram positivas. Surgiram teorias baseadas no desconcertante desenvolvimento de técnicas da harmonia que tentaram, ao máximo, reconciliar o estilo contrapontístico ao harmônico-homofônico, o que resultou na ruína de ambos. Privando a harmonia da consciência dos graus básicos, essas teorias, por um lado, degradaram o contraponto a uma mera arte da condução de vozes e, por outro, a uma simples polifonia acrescentada a uma harmonia preconcebida. Foi posta, assim, em dúvida a verdadeira natureza da arte do contraponto. Enquanto o contraponto for a arte do uso de um motivo básico, uma frase, combinação ou idéia de qualquer espécie - a fim de compor música sem utilizar o método ulterior da variação -, a questão será resolvida, é claro, por meio de partes independentes. Mas a grande quantidade de partes não é o que torna uma obra contrapontística mais importante do que outra composta de um menor número. Além disso, e acima de tudo, tal como o atestam muitos teóricos da velha escola, a harmonia resulta do movimento inteligente das partes independentes, emprestando colorido e significado umas às outras devido às suas mudanças verticais. De acordo com essa observação, a harmonia, enriquecida pelas partes em movimento, mas atada aos graus, não poderia, por um lado, cumprir essa tarefa e, por outro, o seu necessário desenvolvimento, estimulado pela questão fundamental das progressões em movimento, jamais poderia entrar em acordo com as demandas das partes independentes.

 

 

Método de Treinamento

Por tudo isso, a teoria do contraponto será tratada, aqui, de forma totalmente diferente. Não será considerada, de modo algum, uma teoria, mas um método de treinamento, cujo propósito principal será ensinar o aluno de forma a torná-lo apto a utilizar posteriormente seu conhecimento quando compuser. Assim sendo, será aqui visado não apenas o desenvolvimento da habilidade do aluno na condução de vozes, mas também a sua introdução aos princípios propriamente artísticos e composicionais, de modo que ele reconheça até que ponto esses princípios são duradouros na arte. Conseqüentemente não haverá espaço, aqui, para leis eternas. Sabendo que as leis do contraponto têm sido negadas pelo desenvolvimento de nossa arte, aqui só serão dadas sugestões que, de forma mais ou menos estrita, irão se modificar apenas de acordo com o ponto de vista didático. Contraponto não é nem estética, nem teoria, mas um meio pedagógico de treinamento. Não pode haver dúvida alguma de que, após dois séculos de desenvolvimento das formas homofônicas e de uma harmonia muito complexa, os pensamentos musicais de nosso tempo não são contrapontísticos, mas melódico-homofônico-harmônicos. Não deve haver dúvida quanto ao fato de estarmos expressando nossos sentimentos musicais de um modo muito mais flexível e variado do que o requer a arte contrapontística. Não deve haver dúvida de que não restringiremos nosso conhecimento de harmonia, praticamente, ao ponto zero, por conta das necessidades do método contrapontístico em relação ao desenvolvimento de uma idéia musical. Conseqüentemente, não há dúvida de que as regras e leis desta arte não parecerão mais imutáveis ao nosso intelecto. Mas, onde quer que as utilizemos, iremos percebê-las sob uma ótica diferente: nossas leis, restrições, defesas, advertências e até mesmo sugestões terão o propósito de conduzir gradualmente o aluno das formas mais simples às mais complexas; e esse é o motivo, por um lado, de as criarmos, e, por outro, de reduzirmos, também gradativamente, o seu rigor até que elas correspondam, senão ao que o sentimento harmônico de nossa era requer, pelo menos ao sentimento harmônico de, por exemplo, um Brahms ou um Wagner.

Velho Estilo

Basear o ensino do contraponto em Palestrina é tão estúpido quanto basear o ensino de medicina em Esculápio. Nada poderia estar mais distante das idéias contemporâneas, tanto estruturais quanto ideologicamente, do que o estilo deste compositor. Além disso, sua técnica contrapontística não é de forma nenhuma superior à dos compositores holandeses e nem sequer apresenta os problemas mais difíceis e suas soluções descobertas logo após sua morte. Talvez não seja totalmente equivocada a suposição de que um aluno, tendo uma vez "sentido a satisfação proveniente da perfeição, jamais irá esquecê-la". Mas, por um lado, por que deveria ele tentar escrever imitações imperfeitas de um estilo, quando pode sentir a emanação da perfeição das obras do autor mais do que de seus próprios rabiscos? E, por outro, não há maior perfeição musical do que em Bach! Nem Beethoven ou Haydn, nem mesmo Mozart, que dela mais se aproximou, jamais conquistaram essa perfeição. Mas parece que tal perfeição não resulta em um estilo que o aluno possa imitar. Essa perfeição é a da Idéia, da concepção básica, não a da elaboração. A última é somente a conseqüência natural da profundidade da idéia, e isso não pode ser imitado, tampouco ensinado.